A Imagem e Semelhança de Deus: Uma Jornada pelo Hebraico Bíblico, Aramaico e Teologias Antigas

No relato da criação em Gênesis 1:26-27, encontramos uma das declarações mais profundas e misteriosas das Escrituras:
וַיֹּ֣אמֶר אֱלֹהִ֔ים נַֽעֲשֶׂ֥ה אָדָ֛ם בְּצַלְמֵ֖נוּ כִּדְמוּתֵ֑נוּ
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança…”
Essas palavras, escritas em hebraico bíblico, carregam nuances linguísticas e teológicas que nos convidam a mergulhar em um estudo profundo.
Vamos explorar o significado de צֶלֶם (tsélem), “imagem”, e דְּמוּת (demut), “semelhança”, à luz do hebraico, do aramaico dos Targumim, da Septuaginta e das filosofias gregas, além de conectá-las com teorias literárias e pedagógicas.
O Hebraico Bíblico e o Paralelismo Poético
No hebraico bíblico, a poesia e a prosa são marcadas por estruturas literárias como o paralelismo, que reforça ideias por meio de repetições e contrastes. Em Gênesis 1:26, vemos um exemplo de paralelismo sinônimo:
- בְּצַלְמֵנוּ (betsalmenu) – “à nossa imagem”
- כִּדְמוּתֵנוּ (kidmutenu) – “conforme a nossa semelhança”
Essa duplicação não é redundante, mas enfatiza a profundidade da relação entre Deus e a humanidade. A fonética e a semântica dessas palavras revelam que o homem não é apenas uma cópia física de Deus, mas um reflexo de Sua natureza espiritual e moral.
O Aramaico dos Targumim e o Memra
Os Targumim, traduções aramaicas da Bíblia, trazem insights fascinantes. No Targum Neofiti, a criação do homem é atribuída ao Memra, a “Palavra” de Deus:
“E a Palavra do Senhor criou o homem em Sua própria semelhança…”
O conceito de Memra é central na teologia judaica antiga, representando a manifestação divina no mundo. Isso ecoa a ideia do Logos no Novo Testamento (João 1:1-3) e conecta-se com a filosofia grega, especialmente com os pensamentos de Heráclito e os estoicos sobre o “Logos” como princípio ordenador do universo.
Adão Kadmon e Adão Harishon: A Teologia do Adão Celestial
Na tradição judaica, o Adão Kadmon (אדם קדמון), o “Adão Primordial”, é visto como a imagem espiritual de Deus, o protótipo da criação. Esse conceito ajuda a resolver o aparente paradoxo de um Deus incorpóreo criar o homem à Sua imagem.
O Adão Harishon (אדם הראשון), o “primeiro Adão”, é a manifestação terrena dessa imagem. Essa dualidade encontra paralelos na teologia paulina, onde Paulo contrasta o primeiro Adão (terreno) com o segundo Adão (celestial), Jesus Cristo:
“O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.” (1 Coríntios 15:47)
A Septuaginta e a Filosofia Grega
A tradução da Bíblia para o grego, conhecida como Septuaginta, usa as palavras εἰκών (eikón) para “imagem” e ὁμοίωσις (homoíosis) para “semelhança”. Esses termos foram amplamente discutidos pelos filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, em seus tratados sobre a natureza da realidade e da mimesis (imitação).
A ideia de que o homem é uma εἰκών de Deus reflete a noção platônica de que o mundo material é um reflexo imperfeito do mundo das ideias. No entanto, a Bíblia vai além, afirmando que o homem é um representante ativo de Deus na criação, chamado a governar e cuidar do mundo (Gênesis 1:28).
Teoria da Literatura e a Mimesis
A literatura bíblica pode ser entendida como mimesis, uma representação da realidade divina e humana. A criação do homem à imagem de Deus é um ato literário divino, onde o Criador “escreve” Sua imagem na humanidade.
A verossimilhança (a aparência de verdade) na narrativa bíblica não é apenas uma construção literária, mas uma expressão da realidade espiritual.
O estruturalismo nos ajuda a analisar as estruturas narrativas e simbólicas do texto, enquanto a desconstrução nos convida a questionar as interpretações tradicionais e explorar novos significados.
🌿 Jesus como Caminho de Volta ao Éden
O Novo Testamento apresenta Jesus como o “segundo Adão”, aquele que restaura a imagem perdida.
“Quem me vê, vê o Pai.” (João 14:9)
Aqui, a teoria da recepção nos ajuda a entender como a audiência dos Evangelhos interpretaria essa afirmação: para os judeus, isso remete à teologia targúmica; para os gregos, à ideia platônica de eikón (εἰκών), a forma visível da realidade invisível.
O tema central da Bíblia, portanto, é a restauração da imagem e semelhança de Deus no homem, através de Cristo, o segundo Adão.
Conclusão: Jesus, o Segundo Adão
Paulo nos lembra que Jesus é a imagem do Deus invisível (Colossenses 1:15) e o segundo Adão, que restaura a humanidade à sua vocação original. Ele é o caminho de volta ao Éden, onde a imagem e semelhança de Deus são plenamente restauradas.
Que possamos, ao estudar o hebraico, o aramaico e as teologias antigas, nos aproximar cada vez mais dessa imagem e semelhança, refletindo o caráter de Deus em nossas vidas. 🌿
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📚 Referências:
- Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS)
- Targum Neofiti
- Septuaginta (LXX)
- Colossenses 1:15, Hebreus 1:3, 1 Coríntios 15:45-47
- Saussure, F. Curso de Linguística Geral
- Chomsky, N. Estruturas Sintáticas
- Platão, A República
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Shalom, Professor Israel.
Muito interessante o seu estudo sobre “A imagem e semelhança de Deus”. Um dos principais pontos que me chamou a atenção foi acerca de אדם קדמון – Adão Primordial. Seria o Adão que antecedeu a todas as coisas (cf. Col.1:15)?
Em relação a 1Co.15:45-47 há um paralelo do texto de Gn.1:26,27 e Gn. 2:7?
E, pelo que vi, na Peshitta em 1Co.15:45-48 o Apóstolo Paulo faz uso do paralelelismo, nas palavras אָדָם וְאדוֹן.
Talvez, eu não tenha conseguido expressar em palavras todas as minhas dúvidas.
Excelente estudo, Professor Israel.
Shalom. Exatamente. Você compreendeu muito bem o estudo bíblico.