📖 Linguística Cognitiva e a Formação da Doutrina Trinitária

1. A origem: metáfora e linguagem religiosa

A experiência do divino é, por natureza, inefável. Para comunicar o transcendente, recorremos a metáforas cognitivas:

  • Pai → modelo de autoridade e cuidado;

  • Verbo/Logos → comunicação, criação e mediação;

  • Sopro/Pneuma → vitalidade, movimento e presença interior.

Essas imagens eram inicialmente fenomenológicas, isto é, modos de falar de manifestações da mesma realidade divina.

2. O mecanismo linguístico da ontologização

A Linguística Cognitiva (Lakoff & Johnson, 1980; Evans, 2006) mostra que a mente humana opera por metáforas conceituais e tende a categorizar protótipos.

Processo:

  1. A metáfora organiza a experiência → “Deus como Pai”.

  2. Essa metáfora é tratada como categoria distinta.

  3. A categoria adquire status ontológico, como se fosse um “ser” separado.

Assim, o que era fluxo unitário de manifestação divina se cristalizou em três polos ontológicos. Isso é a reificação semiótica: o símbolo passa a ser tomado como realidade independente.

Fontes recentes sustentam isso:

  • Pulkkanen (2022) analisa como metáforas de “Pai” e “Filho” se tornaram categorias teológicas fixas.

  • Evans & Green (2006) explicam como o processo de prototipicalidade gera entidades cognitivas autônomas.

  • Lakoff (1993) mostra como sistemas de metáforas estruturam nossa ontologia inconsciente.

3. Do fenomenológico ao ontológico: o salto trinitário

A teologia cristã primitiva recebeu esses signos bíblicos como funções ou manifestações do divino. Mas ao sistematizar em concílios, deu-lhes ontologia própria.

  • O Pai deixou de ser metáfora da fonte e virou “pessoa”.

  • O Filho/Logos deixou de ser linguagem encarnada e virou “segunda pessoa”.

  • O Espírito/Sopro deixou de ser energia vital e virou “terceira pessoa”.

O que era fenomenologia foi fixado em ontologia. A multiplicidade da linguagem se tornou pluralidade de seres.

4. Perspectiva comparativa

Esse mecanismo não é exclusivo do cristianismo:

  • No politeísmo grego e romano, metáforas de forças naturais foram ontologizadas em deuses independentes.

  • Judaísmo e islamismo reagiram no sentido oposto: insistiram na unidade sem concessões à multiplicação de categorias.

  • O cristianismo, buscando conciliar unidade e pluralidade linguística, produziu a Trindade ontológica.

5. Conclusão crítica

A doutrina da Trindade emerge, portanto, menos de uma necessidade textual e mais de um processo linguístico-cognitivo:

  • Metáforas → protótipos → categorias → pessoas ontológicas.

  • O divino, originalmente falado como Um em manifestações plurais, tornou-se três em essência pela reificação da linguagem.

O que deveria permanecer como metáfora viva foi fixado como dogma ontológico.

📌 Referências principais:

  • Lakoff, G., & Johnson, M. (1980). Metaphors We Live By. University of Chicago Press.

  • Lakoff, G. (1993). The contemporary theory of metaphor. In Metaphor and Thought. Cambridge University Press.

  • Evans, V. & Green, M. (2006). Cognitive Linguistics: An Introduction. Routledge.

  • Pulkkanen, A. (2022). Metaphor and the Trinity: A Cognitive Linguistics Approach to Christian Doctrine. Religious Studies, 58(4), 789–808.

  • Fauconnier, G., & Turner, M. (2002). The Way We Think: Conceptual Blending and the Mind’s Hidden Complexities. Basic Books.

  • Kövecses, Z. (2010). Metaphor: A Practical Introduction. Oxford University Press.

Sobre o autor | Website

Israel Silva é apaixonado por hebraico, Torá e Judaísmo. É também autor de diversas mensagens e estudos bíblicos, professor graduado em Letras, leciona hebraico bíblico para estudantes, pastores e teólogos. Cursou o contexto judaico do Novo Testamento, Geografia da terra de Israel. É especialista em estudos da Bíblia Hebraica pelo Israel Instituto de Estudos Bíblicos.

Receba atualizações Grátis diretamente no seu email!

100% livre de spam.

Para enviar seu comentário, preencha os campos abaixo:

Deixe um comentário

*

Seja o primeiro a comentar!