Adão, Eva e a Serpente – Entre a Tentação e a Queda

Introdução

O relato da queda da humanidade em Bereshit (Gênesis) 3 é uma das passagens mais ricas e enigmáticas da Torá. O diálogo entre a serpente e Chava (Eva), a proibição do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e a consequente expulsão do Gan Éden são temas que geraram incontáveis interpretações ao longo da história, tanto no pensamento rabínico quanto na teologia messiânica.

Mas o que realmente aconteceu ali? Qual o papel das leis de cerca na queda do homem? Como a interpretação linguística e estrutural do texto hebraico nos ajuda a entender melhor essa narrativa? E, finalmente, o que esse episódio nos ensina sobre a pedagogia divina e a relação entre tradição e revelação?

Vamos mergulhar no texto sagrado, analisando sua estrutura literária, suas conexões filosóficas e suas implicações espirituais.

📜 O Texto Bíblico

Texto em hebraico:

וְהַנָּחָשׁ֙ הָיָ֣ה עָר֔וּם מִכֹּל֙ חַיַּ֣ת הַשָּׂדֶ֔ה אֲשֶׁ֥ר עָשָׂ֖ה יְהֹוָ֣ה אֱלֹהִ֑ים וַיֹּ֙אמֶר֙ אֶל־הָ֣אִשָּׁ֔ה אַ֚ף כִּֽי־אָמַ֣ר אֱלֹהִ֔ים לֹ֣א תֹֽאכְל֔וּ מִכֹּ֖ל עֵ֥ץ הַגָּֽן׃
(Bereshit / Gênesis 3:1)

Tradução para o português:

“E a serpente era mais astuta que todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha feito, e disse à mulher: ‘Por acaso Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?'”

Aqui, a serpente (הַנָּחָשׁ hanachash) aparece como um ser עָר֔וּם (arum), palavra que significa “astuto” ou “sagaz”, mas que carrega também um jogo de palavras com arom (עָרוֹם – “nu”), usada anteriormente para descrever Adão e Eva (Bereshit 2:25). O texto estabelece um paralelismo fonológico que sugere uma ironia: enquanto Adão e Eva estavam “nus” em inocência, a serpente estava “nua” em sua astúcia.

🏗️ As Leis de Cerca: Proteção ou Armadilha?

A tradição judaica ensina que Adam HaRishon tinha a função de guardar o jardim. Esse conceito vem do verbo שָׁמַר (shamar), que aparece em diversos contextos na Torá relacionados à guarda dos mandamentos:

“para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus, para guardar (לִשְׁמֹר) todas as palavras desta lei e estes estatutos.” (Devarim / Deuteronômio 17:19)

Assim, Adão estabeleceu uma lei de cerca, um princípio rabínico que consiste em criar regras adicionais para evitar a transgressão de um mandamento. Quando Chava responde à serpente, ela diz algo que Deus nunca ordenou:

“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.” (Bereshit 3:3)

A Torá nunca menciona uma proibição de tocar no fruto! Essa foi uma cerca criada por Adão, uma tradição humana que, longe de proteger, serviu como armadilha. A serpente explorou essa confusão, levando Eva a tocar o fruto e, ao ver que nada lhe acontecia, concluir que talvez a proibição de Deus fosse igualmente inofensiva.

Essa questão ressurge nos dias de Yeshua, quando Ele confronta os fariseus sobre tradições humanas que obscurecem os mandamentos divinos:

“Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los.” (Mateus 23:4)

Não há problema em estabelecer tradições como auxílio na observância da Torá, mas é essencial diferenciar o que é mandamento divino do que é costume humano.

📖 A Narrativa Bíblica e o Estruturalismo Literário

A abordagem estruturalista aplicada à Bíblia revela padrões narrativos recorrentes. O episódio da queda segue uma estrutura cíclica clássica de tentação e erro:

  1. A sedução – A serpente distorce as palavras de Deus.
  2. A dúvida – Eva adiciona à ordem divina e se deixa enganar.
  3. A transgressão – O fruto é comido.
  4. A revelação – Eles percebem sua nudez e tentam se esconder.
  5. A consequência – Deus decreta suas punições.

Esse ciclo é comparável a outras narrativas mitológicas e filosóficas, como o conceito de mimesis na tragédia grega, onde personagens são tragados pelo destino ao tentarem superar sua condição.

Além disso, podemos conectar essa narrativa à teoria da recepção, analisando como diferentes tradições interpretam o evento:

  • No pensamento rabínico, Adão e Eva não cometeram um pecado original irrevogável, mas uma transgressão corrigível.
  • Na tradição messiânica, Yeshua é visto como o “segundo Adão” que restaura a humanidade ao estado de pureza.

“Porque, assim como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um homem.” (1 Coríntios 15:21)

🏛️ A Filosofia Grega e a Tentação do Conhecimento

Os filósofos gregos também refletiram sobre a relação entre sabedoria e transgressão. Platão, por exemplo, via o conhecimento como um bem absoluto, enquanto Aristóteles afirmava que o excesso de conhecimento sem ética leva ao erro.

Na tradição judaica, o problema da árvore do conhecimento não era a sabedoria em si, mas a tentativa de alcançá-la fora da ordem divina. Esse conceito ressoa com os ensinamentos do Zohar:

“O conhecimento sem a reverência ao Eterno leva à destruição da alma.” (Zohar, Bereshit 28b)

Isso também se conecta ao pensamento de Rambam (Maimônides), que argumentava que a Torá ensina a busca do conhecimento, mas dentro da disciplina da moralidade.

🌍 Dimensão Terrena e Dimensão Transcendental

A queda de Adão e Eva não foi apenas um evento físico, mas uma mudança na realidade espiritual. Antes, eles viviam em um estado de harmonia com Deus, mas depois da transgressão, passaram a experimentar separação e sofrimento.

Isso reflete a dualidade da existência humana: terra e céu, carne e espírito, temporal e eterno. Yeshua, como o “último Adão”, reconcilia essa separação ao abrir o caminho de volta ao Éden espiritual.

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim.” (Yochanan / João 14:6)

Conclusão

O relato da queda de Adão e Eva nos ensina que:

  1. A fidelidade à Palavra de Deus deve ser preservada sem acréscimos ou distorções.
  2. As tradições são úteis, mas não podem substituir os mandamentos divinos.
  3. O conhecimento sem temor a Deus leva à ruína.
  4. Yeshua é o Messias que restaura o acesso ao Éden perdido.

Assim, essa narrativa não é apenas uma história antiga, mas um modelo de nossa própria jornada espiritual.

📚 Referências

  • Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).
  • The Great Mystery: Or, How Can Three Be One – R. L. Solberg.
  • Zohar, Bereshit 28b.
  • Talmud Bavli, Sanhedrin 38b.
  • Rambam, Moreh Nevukhim (Guia dos Perplexos).

Shalom! ✡️🔥

Sobre o autor | Website

Israel Silva é apaixonado por hebraico, Torá e Judaísmo. É também autor de diversas mensagens e estudos bíblicos, professor graduado em Letras, leciona hebraico bíblico para estudantes, pastores e teólogos. Cursou o contexto judaico do Novo Testamento, Geografia da terra de Israel. É especialista em estudos da Bíblia Hebraica pelo Israel Instituto de Estudos Bíblicos.

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